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Autorretrato: avaliação do professor sobre suas práticas profissionais a partir das suas trajetórias formativas

Por

Angely Maíra Biffi de Holanda 

Antônio Saú Rodriguez 
Gerson Filho 






Jornalista. Pós-graduada em Comunicação Executiva e Eventos e Pós-graduada em Docência do Ensino Superior. Experiência profissional como Assessora de Comunicação Interna e Eventos; Assessora de Imprensa; Redatora e Professora/ Consultora de cursos online.





 Administrador pela ESAN/FEI e MBA em Gestão Financeira, Controladoria e Auditoria pela FGV. Executivo de Finanças da Indústria Automobilística e Consultor de Empresas. Professor de Custos e Contabilidade na Pós-graduação da FEI e da FGV e na Graduação da Sumaré.







Docente atuante em instituições universitárias, onde ministra aulas do curso técnico em informática e negócios, atua com cursos livres desde 2003, é graduado em Marketing pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro (2014). Possui onze anos de experiência na área de informática, tendo passado por empresas como: IBM, HP e Banco Santander.




    A conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em “Docência para o Ensino Superior” trouxe a possibilidade de desenvolvimento de um Trabalho de Conclusão de Curso voltado ao exercício de recuperar nossas memórias escolares para melhor compreender a prática pedagógica possível para cada sujeito investigado em função de suas experiências acumuladas.

Nesse exercício, seria ingênuo de nossa parte acreditar que esgotaríamos esse assunto tão amplo, razão da participação no curso, em um breve estudo. Todavia, é possível dizer que sua construção permite, de uma perspectiva possível, ainda que privilegiando um recorte temporal, e de posse de dados tão significativos por se tratar de pessoas com idade, profissão e história de vida muito diferentes, compreender como as experiências formativas influenciam por meio das disposições, nossas práticas pedagógicas.

De acordo com o texto “Docência na universidade, cultura e avaliação institucional: saberes silenciados em questão” de Maria Isabel da Cunha, publicado na Revista Brasileira de Educação v. 11 Nº 32 maio/agosto 2006:

A formação do professor universitário tem sido entendida, por força da tradição e ratificada pela legislação, como atinente quase que exclusivamente aos saberes do conteúdo do ensino (pág. 258)
E ainda,
A naturalização da docência refere-se à manutenção dos processos de reprodução cultural como base da docência, ou seja, o processo ensina a partir da sua experiência como aluno, inspirado em seus antigos professores (pág. 258)

Ao que parece, segundo a autora, uma parcela significativa dos professores universitários dos cursos de graduação e pós-graduação, constitui-se de profissionais das respectivas carreiras, sem formação pedagógica, principalmente os docentes das carreiras ligadas ao mercado corporativo, tais como administradores, economistas, engenheiros, médicos, etc.

Se não há formação pedagógica, de onde essas práticas retiram os princípios e pressupostos para sua configuração? A hipótese possível é a de que as características individuais, evidenciadas no relato de vida de cada sujeito, serão capazes de revelar as disposições dos professores presentes nas práticas cotidianas, por meio da recuperação de suas memórias escolares.

A história de vida dos sujeitos analisados, suas trajetórias como professores ou aspirantes a professor serviu como instrumento para destacar o quanto a “reprodução cultural” referencia a forma de ministrar aulas. No site http://rvccno.blogspot.com.br/2009/05/metodologia-historia-de-vida-oquee.html, encontramos uma abordagem que ilustra a forma abordada nesse estudo para pensar as histórias de vida:
O sociólogo americano Denzin propôs, em 1970, a distinção das terminologias: life story (a estória ou o relato de vida) como aquela que designa a história de vida contada pela pessoa que a vivenciou. Nesse caso, o pesquisador não confirma a autenticidade dos factos, pois o importante é o ponto de vista de quem está narrando.

Para a análise dos dados presentes nas histórias de vida, os estudos de Lahire (2004) trazem uma contribuição importante ao centralizar a discussão dos retratos sociológicos na construção de disposições possíveis para os sujeitos sociais em diferentes contextos de inserção.
As questões norteadoras buscaram responder, além de impressões subjetivas, algumas questões ligadas diretamente ao exercício da prática: É suficiente para o professor universitário ter proficiência na matéria que leciona?

O quanto pode melhorar a qualidade de suas aulas apropriarem-se de conhecimentos pedagógicos? Que competências se esperam de um professor na hora de lecionar? Existe uma técnica para aprender a ser professor? Como é esse processo de aprender a ser professor? Qual é a identidade do professor, especialmente o universitário?

Recuperar excertos da memória de como tudo começou, rememorar experiências e reconstruir trajetórias escolares influenciaram o desenvolvimento de nossas práticas pedagógicas, ao mensurar aspectos inconscientes de nossa identidade profissional.


RETRATOS SOCIOLÓGICOS: CONSTRUÇÃO DE AUTORRETRATO



A construção de retratos sociológicos (LAHIRE, 2004) usa as bases teóricas, métodos e problemas para construir uma sociologia experimental, capaz de evidenciar escolhas, hábitos e tendências. Para o autor, o sujeito definido como realidade social com comportamentos que podem sofrer variações em face de diferentes contextos, permite o exame do pertencimento a diversos cenários e busca o entendimento de como as disposições se manifestam no conjunto dessas relações.

Essa metodologia propõe um trabalho que prioriza um retorno crítico aos processos de socialização para a compreensão das ações tomadas pelos sujeitos em seus contextos profissionais e pessoais.

Só um dispositivo metodológico desse tipo permitiria julgar em que medida algumas disposições sociais são ou não transferíveis de uma situação para outra e avaliar o grau de heterogeneidade ou homogeneidade do patrimônio de disposições incorporadas pelos atores durante suas socializações anteriores (Lahire, 2004, p. 32). 

Essas disposições construídas pelo sujeito possuem relação com o mundo, o indivíduo não se produz isolado da sociedade, ele é uma realidade social caracterizada por sua complexidade disposicional, que se manifesta na diversidade dos domínios de práticas ou cenários nos quais insere suas ações (LAHIRE, 2004).

Para o autor, o mais singular dos traços de um indivíduo só pode ser compreendido com a reconstrução do tecido social à que ele esteve submetido e que apreender seus comportamentos supõe reconstruir essa trajetória.

Assim, a construção dos retratos sociológicos permite pôr em destaque o que realmente configura a ação dos sujeitos, uma vez que nem sempre são capazes de reproduzir seu discurso em ações coerentes.

A simples comparação entre o que os indivíduos dizem que fazem e o que realmente fazem, põe em evidência essa diferença; os indivíduos incorporam crenças, mas não forjam hábitos para atingir tal comportamento e nesse caso, a crença é impotente, pois, não encontra condições disposicionais para sua concretização (Oliveira, 2014, pág. 67).

Talvez, por isso, a variação contextual dos comportamentos individuais mostra múltiplas pequenas contradições, heterogeneidades comportamentais imperceptíveis aos indivíduos que tentam manter a ilusão da coerência. É preciso olhar para além dos universos sociais e diferenciar as situações no interior desses domínios, portanto, para Lahire (2005) não é só a classe social que conta, mas também as diferenças individuais dentro de uma mesma classe, ou ainda, nos diferentes contextos.

Estão, portanto, colocadas diante de nós pequenas singularidades que podem indicar diferenças significativas nas escolhas cotidianas dos sujeitos, esses intervenientes estão ligados, muitas vezes, na maneira como cada um interpreta os processos vividos e responde aos desafios que enfrenta.

Inserido em uma rede de ensino, o professor aceita as metas propostas e contribui com os planos determinados pela instituição, de modo a interagir com ela e dar sentido às suas ações (LAWN, 2001), o que reforça o surgimento de disposições capazes de responder às demandas vinculadas às políticas educacionais e a uma padronização ligada a uma ideologia que procura alinhar o trabalho educativo às demandas do mercado. E como o professor responde a todo esse processo? (...) A resposta parece estar nos processos de socialização que, por meio das estruturas constituidoras do habitus e geradoras das disposições, levam o professor a assumir determinadas posturas e comportamentos no exercício da docência ao se deparar com a cultura escolar ali existente (Oliveira, 2014, pág.70).

  Ao interagir diante de tais desafios tem, inicialmente, um conjunto de práticas cristalizadas que, num primeiro momento lhes foram impostas pela experiência acumulada pelos professores que o antecederam na profissão, e nem sempre esse conhecimento é capaz de responder aos desafios enfrentados cotidianamente.

            Esse trabalho “real” se vê diante de interações cotidianas onde a identidade profissional se inscreve num jogo de reconhecimento entre mostrar-ocultar com um sentido operacional e normativo. São atividades que exigem conhecimentos compartilhados que não são estritamente pedagógicos ou didáticos, mas se alimentam de crenças pessoais, do senso comum compartilhado e da ciência que em última instância, racionaliza as ações e as práticas dos sujeitos (LAHIRE, 2004; 2005). Parte importante desse processo pode ser verificada nos dados apresentados nos retratos sociológicos construídos nos diferentes contextos de experiência do sujeito.

A leitura interpretativa dos retratos sociológicos (LAHIRE, 2004) recupera os indicadores desse processo e o modo natural de conceber o mundo em face das condições sociais de sua produção para pôr em destaque essa “localização social” do pensamento de acordo com a maneira que é ordenada pela sociedade e com a significação que lhe é atribuída (BERGER & LUCKMANN, 2012).

Todo esse processo constitui a cultura dos professores que se expressa no que pensam, dizem e fazem, é um mecanismo que decorre de um conjunto de condições que envolvem um sistema simbólico de valores, normas, crenças e representações que, por sua vez, traduz uma cultura profissional que já existe nas instituições e com a qual o professor interage cotidianamente no exercício da profissão.

Importa dizer que o professor como qualquer outro profissional construído a partir de um contexto social carrega as configurações presentes nos processos de socialização e é, mesmo que inconscientemente, devedor dessas características socializadoras que, de modo recorrente influenciam as escolhas pessoais e profissionais.

Em consonância com a socialização vivida e experimentada pelo sujeito como construção de um parâmetro social determinante está um conjunto de procedimentos de controle a que se veem submetidos no exercício profissional, de um lado, e os movimentos de resistência, de outro. Tais fatores incitam a construção de novas posturas, de práticas diferenciadas, de encaminhamentos para resolução de problemas.

A análise da prática pedagógica, portanto, em face das narrativas não é isenta do ponto de vista particular do sujeito, nem tampouco livre de uma intencionalidade construída nos processos de socialização. Tal mecanismo induz o sujeito de maneira inconsciente a vender sua melhor versão de si mesmo e essa constatação, não significa que o narrador falte com a verdade, mas apenas que colocará sua própria convicção sobre si mesmo, fato que evidencia a maneira como se vê – sua identidade pessoal e profissional. 



Identidade e memória docente: O legado que nos foi deixado e o legado que deixaremos

Angely Maíra Biffi de Holanda
de jornalista a professora.

O mundo da docência sempre me encantou, sempre tive paixão e vontade de lecionar, mas no primeiro momento optei por outro curso. Queria ser jornalista, antes de ser professora, no entanto, nunca desisti da ideia de atuar dentro de uma sala de aula. Por isso, depois de cursar a graduação e outra pós, também voltada para comunicação, resolvi de vez entrar na área da docência e experimentar esse mundo que sempre almejei. E assim, conciliar o jornalismo com a prática da docência. Para começar, vou relatar um pouco de como foi minha fase escolar até a graduação e em fim, de como entrei para o universo da docência. Minha lembrança mais remota da época escolar é a partir da pré-escola. Eu sempre gostei de ir para escola, nunca tive problemas, era uma criança quieta, um pouco tímida, mas isso nunca me prejudicou e nem criou nenhum trauma. Sempre tive estímulos em casa para aprender e me sair bem na escola. A alfabetização foi uma experiência tranquila e positiva! Sempre tive vontade de aprender, como tinha uma grande exigência em casa, mas também muito estimulo, a alfabetização foi algo bom, prazeroso e rápido. A professora nessa fase escolar, era uma mãezona, era daquelas profissionais ainda tradicionais, bravas, mas ao mesmo tempo estava pronta para ajudar os alunos em qualquer situação. Era uma pessoa carinhosa, mas que cobrava bastante dos alunos, às vezes até extrapolava na exigência, com alguns “castigos”, no sentido de mandar os alunos fazerem em casa, 100 vezes cada tabuada. A relação com a escola sempre foi agradável. As aulas eram bem ministradas, eu sempre tive bons relacionamentos com a turma, mas sim era uma aluna competitiva, gostava de estar sempre entre as melhores da classe. Até porque essa era uma cobrança que vinha de casa também, mas eu nunca achei uma cobrança ruim, pois sempre me foi muito bem explicado, que eu como criança só tinha obrigação de ir para escola e depois brincar... Então, fazia o máximo para ser exemplo mesmo e assim atender as expectativas em casa também. Sim! Havia bastante estímulo em casa e eu sentia sim a obrigação de estudar e me sair bem na escola. Mas comparações e críticas isso não havia, o que havia era sempre muita conversa e também ajuda. Quando inicie o ginásio, da 5° a 8° série, tive mudanças, no início senti um pouco de insegurança. Continuei ainda na quinta série estudando na mesma escola, mas tive que mudar de período, passar para o horário da tarde, onde as aulas iniciavam às 13h e terminavam às 18h, o horário do término que foi um choque, pois eu não estava acostumada a andar sozinha na rua, nessa época já não dava mais para nenhum familiar ir levar e buscar na escola, porque era “mico”, íamos em grupos de amigos, mas mesmo assim, todos da mesma idade, sendo assim essa foi a primeira insegurança. Outro ponto foi ter uma sala de aula muito mista em relação a idades, pois até a 4° série, eu estava acostumada com a turma toda da mesma idade, e nessa transição me deparei com gente bem mais velha, na época eu tinha 11 anos e dentro da sala havia rapazes já de 16 anos, bem diferente, era outro mundo, outro comportamento, outro palavreado... Aos poucos fui me acostumando. Em relação à quantidade de professores, isso não me assustou, achei até interessante e prático, o que também me deixou um pouco chocada foi o comportamento de alguns professores, como a turma era bem distinta e precisavam controlar aqueles alunos indisciplinados, alguns já usavam um linguajar mais próximo daquela realidade, mais malandro, alguns falam até palavrões, e isso, eu não estava acostumada, pois em casa nunca ninguém falava... Então ouvir na escola era um pouco assustador. Lógico, que com o passar do tempo a gente vê que era um mecanismo que o professor tinha para controlar alguns alunos. Na sexta série tive que trocar de escola, devido uma reorganização que o Governador da época, Mário Covas fez, tive que ir para uma escola bem mais longe, era uma boa caminhada. E para piorar, teve “richa” de uma escola com a outra, os alunos da escola que estávamos chegando queriam mostrar para os novos que eles que mandavam, muitos alunos acabavam entrando... Nesse panorama, acabamos assistindo muitas brigas entre os alunos, eles brigavam na rua, de se baterem, a escola ainda ficava em uma ladeira, o pessoal sai rolando a rua era uma cena bizarra. Muitas vezes, nós que não queríamos participar tínhamos que sair escondidos pela secretaria da escola ou até ficar dentro da escola esperando o tumulto acabar. No ensino médio da sexta série até o segundo colegial permaneci na mesma escola, no terceiro colegial mudei para outra escola. Fiz o colegial normal. Nessa fase apenas fiz um curso de espanhol, que foi muito bom para minha educação. Nessa fase comecei a ter certeza do que gostaria de seguir profissionalmente, pensei em duas carreiras, jornalismo e letras. No entanto, jornalismo falou mais forte e acabei cursando a graduação de comunicação. No entanto, sempre tive paixão e vontade de lecionar, então essa segunda opção sempre ficou dentro de mim. Porém, como a vontade de ser professor permaneceu, acabei optando por cursar uma pós em Docência do Ensino Superior para ter uma base e conhecimento para atuar como professora. Finalizar a pós, partir para um mestrado e atuar como docente. Minha família sempre apoiou da melhor maneira até hoje. Eu sempre tive paixão por comunicação, o curso foi bem completo e atendeu minhas expectativas, mas é claro que muitas coisas só aprendi no dia-a-dia da profissão. Na época da faculdade, consegui fazer dois estágios, foram experiências boas, um voltado para o marketing e o outro, em assessoria de imprensa. A faculdade onde realizei meu curso foi uma ótima com turmas reduzidas e minha sala, que era considerada uma das maiores, tinha apenas 20 alunos. Isso era muito gostoso, pois deixava todos muito próximos, tanto os alunos, como os professores. A faculdade oferecia palestras para diversas áreas de comunicação e também aulas extras. Os professores eram do mercado e sempre estavam bem atualizados e passavam para nós a realidade da profissão. Na verdade, só continuamos porque gostávamos e era aquilo que desejávamos, pois dependendo de alguns professores tão realistas que expunham uma realidade tão cruel, muitos poderiam até desistir. Eu não fiz licenciatura e nenhum curso relacionado a magistério, então não atuava como professora. Mas sempre tive as melhores expectativas do jornalismo e as expectativas foram atendidas. Claro que houve inspiração em professores, e acho que em qualquer momento da minha vida, a família sempre foi o vínculo principal, mas claro que conquistei muitos amigos nessa época, e amigos que permanecem até hoje. Muitos que estudei e trabalhei juntos e que continuaram para a vida! Esse relacionamento é muito importante tanto para a vida profissional, quanto pessoal. Acredito que principalmente nessa fase da graduação e até o momento, só tive sucessos, pois conquistei tudo o que almejava. Terminei toda a fase escolar no tempo adequado, sem repetição de ano e com um bom aprendizado. Realizei o curso de graduação que desejei e atuo na área de comunicação como planejei. Também tive a oportunidade de fazer uma pós em comunicação executiva e eventos e aprimorar alguns conhecimentos e adquirir novos para a área de atuação. E agora, nessa outra fase, busquei a docência, também estou bem satisfeita e posso garantir que só com sucessos até o momento, pois também termino mais uma pós, no âmbito da docência do ensino superior e nesse meio do caminho, tive experiências boas, como ministrar cursos online, uma grande satisfação e alegria. E agora, quero prosseguir nesse caminho da docência, tenho planos para o mestrado logo mais. Dessa maneira, com um pouco da minha trajetória, posso concluir que tudo o que passei no início da fase escolar até o momento em que me encontro foram pontos que influenciaram minha tomada de decisão para realmente querer entrar na vida acadêmica de docente, e também tenho certeza que professores e até mesmo colegas de profissão me influenciaram na profissional, na minha atuação como jornalista e como futura professora.



Antônio Saú Rodriguez
 de executivo a professor

Não tive pré-escola. Entrei diretamente no ensino primário em 1954. Odiava ir a escola. Aliás, minha primeira escola desabou devido a um temporal. Não me machuquei e achei ótimo não ter mais aulas, pelo menos por um período. Não havia jogos ou brincadeiras. Claro que eu preferia jogar bola a ir à escola. Mas apesar dos pesares, não tive dificuldade de aprendizagem. Meu problema era o comportamento. A relação no ambiente escolar era tensa. A disciplina era exigida a qualquer custo. Até com pancadas na cabeça, dadas com o ponteiro (régua que a professora usava para fazer traços na lousa). Minha família cobrava e queria que eu estudasse e fosse bem na escola sem qualquer outro tipo de consideração. A matéria era dada, as lições de casa tinham que ser feitas e ter um bom aproveitamento era tido como obrigação. No ginásio, decidi que tinha vocação para o sacerdócio e fui estudar em um seminário cujos padres eram nossos professores; todos alemães. O choque da mudança foi grande. Mas foi muito positivo. Apesar da seriedade como era encarado o aprendizado, as relações eram harmoniosas. Havia um regulamento que tinha que ser seguido à risca, com horário estipulado para tudo. Acordar e dormir, orar, alimentar-se, assistir às aulas, praticar esporte, período de lazer, estudar e dormir. Como todos cumpriam o regulamento ficava mais fácil enquadrar-se nele. A relação com a família foi substituída pela relação com os professores e colegas de seminário, pois eu era interno e só voltava para casa nas férias escolares de julho e dezembro. Era um ambiente de amizades, seriedade e disciplina, porém agradável e motivador. Passei a ter as melhores notas entre todos os alunos do seminário e a conviver com um nível intelectual e social, muito superiores ao que havia na minha família. As atividades esportivas eram bastante estimuladas, e o ambiente era de competição, tanto esportiva como de rendimento escolar. Para se ter uma ideia os resultados das provas mensais eram anunciados em uma reunião em que participavam todos os seminaristas. Estudei no seminário até o segundo ano colegial que na época era denominado Clássico. Concluindo não ser vocacionado para o sacerdócio saí do seminário com a clara noção de que precisava trabalhar para me sustentar e ajudar minha família. Aos dezoito anos comecei a fazer o curso Técnico de Contabilidade por ser necessário ao meu desempenho profissional e à busca por melhores empregos e salários. Não foi uma escolha, mas uma necessidade. Eu já era adulto e responsável. Já me encaminhava para a carreira profissional. Naquele período as pessoas de minha idade já trabalhavam há algum tempo (geralmente a partir dos 14 anos). O curso técnico que eu fazia me concedia as prerrogativas que hoje são do curso superior em contabilidade. Aliás, pertenci à última turma que teve essa condição. Eu já trabalhava na área. Graduei-me em Administração, mas não imediatamente ao término do curso técnico. Voltei aos bancos escolares 3 anos depois e identifiquei-me muito com o curso. O nível era muito superior ao da graduação atual. Tive alguns ótimos professores, todos eles profissionais das respectivas áreas. O ambiente universitário abriu em muito meus horizontes. Havia uma grande sinergia entre o trabalho e a faculdade. Isso me levou a estudar muito seriamente. Algumas matérias como marketing, propaganda, lógica e sociologia, eu estudava por prazer; àquelas relacionadas especificamente ao meu trabalho estudava por necessidade e por sentir a utilidade que teriam na minha vida profissional. Essas aulas tinham um caráter de treinamento profissional. Minha carreira profissional ia bem. Aos 24 anos de idade eu já era casado e antes de concluir o curso superior tive o primeiro dos meus cinco filhos. Já ocupava um cargo de supervisão em uma indústria automobilística e tinha um ótimo salário. Os tempos eram bem outros. Ampliei meu círculo de amizade. Minha família, mais propriamente meu pai e minha mãe, não pertenciam ao meu círculo social que era bastante amplo englobando colegas da faculdade, do trabalho e do esporte. Minha convivência familiar era mais restrita à minha esposa e filhos. Mas nunca deixei de apoiar meus pais e a alegria de meu pai com meu sucesso profissional era um grande estímulo para mim. Durante minha vida profissional fiz vários outros cursos, inclusive MBA em Gestão Financeira, Contabilidade e Auditoria. Tenho muito a agradecer, pois sempre tive muitas oportunidades e sucesso em minha carreira profissional. Sempre fui apaixonado por desafios, por isso não sei o que predomina em minha vida: desafio ou paixão. Com essas características cheguei ao magistério acreditando que era obrigação de todos os alunos estudarem e cuidarem de suas vidas se quisesse ser alguém. Não conseguia aceitar alunos desmotivados, pois sou um especialista nas matérias que leciono. Ledo engano. Quanto estive enganado neste período todo. A visão pedagógica deu-me outro sentido de lecionar. O de conduzir os alunos a aprenderem a aprender. Mostra-lhes perspectivas, ampliando seus horizontes. Tenho certezas que serei um professor e não um treinador.





Gerson Filho
de técnico a professor

Não possuo muitas lembranças do período em que frequentava a educação infantil, acredito que este período deve ter sido um tanto quanto complicado para mim, me lembro sempre de pessoas gritando comigo, me maltratando, lembro-me apenas que deveríamos ficar na roda e se alguém saísse tomava uma bronca da professora. Já na época do ciclo I me lembro vagamente da minha professora do primeiro ano, especificamente não me lembro das matérias, mas lembro que foi nesta época que aprendi a amarrar o sapato e a fazer bola de chiclete, sei que foi nesta época em que fui alfabetizado, mas sempre corria e conversava bastante com os colegas, gostávamos das mesmas coisas, um tempo depois já na quarta série, a professora pedia para que fizéssemos trabalhos em grupo, íamos até a biblioteca e desenvolvíamos os trabalhos. Quando ingressei no ciclo II, a antiga quinta série, tínhamos mais professores, mais responsabilidades, fazíamos trabalhos em grupo seminários, lembro-me de alguns professores, lembro-me do professor de matemática que ia trabalhar bêbado, na época não tinha esta noção, mas hoje percebo o que acontecia, em relação ao aprendizado foi uma situação que me gera problema até hoje, na sexta série a professora não tinha como recuperar os alunos que ficavam para traz, deu andamento na matéria e quem aprendeu, aprendeu, alguns faziam aula particular, o famoso “kumon”, mas outros que não tinham condições (como eu) ficaram para traz, e ainda por ser criança e pensar apenas no momento e em querer brincar, não percebi a gravidade da situação, além disso, os alunos que demonstravam ter um poder aquisitivo acima dos outros, sempre foram tratados de forma diferente. O mesmo acontecia com as meninas, principalmente as mais “bonitinhas”, na oitava série tive professores que enrolavam e matavam as aulas, a sensação que tinha era a de que os professores queriam estar em outro lugar, de preferência o mais longe dali, no final deste ano fui reprovado, após fazer novamente a oitava série, fui mandando para um colégio do estado; como meus pais não se importavam com a escola, bastava eu estar em uma, fui para um colégio que parecia uma creche para adolescentes, os professores berravam, os alunos eram enlouquecidos, foi uma época triste para mim, poucos amigos, poucas possibilidades de desenvolver a criatividade, nesta fase do ensino médio, já sentia a necessidade de trabalhar, procurava cursos que pudesse fazer, mas eram caros, então ia todos os dias em uma escola de informática e perguntava se poderia trabalhar ali, todos os dias recebia um não, até que um belo dia recebi um sim, mas não teria salário, porém poderia fazer todo e qualquer curso que quisesse. Nesta época tive minha primeira experiência como docente, um professor faltou e me colocaram para substituí-lo. Já tinha visto a aula em questão quatro vezes e nada poderia dar errado e foi justamente isso o que aconteceu, faço o trabalho docente, pensando como eu posso fazer melhor do que os professores que me ignoraram, ou que enrolavam, desenvolvo meu trabalho hoje pensando em como posso oferecer para o aluno, tudo aquilo que eu gostaria de ter tido em uma sala de aula e não tive, após este período, fui me desenvolvendo, fazendo cursos e continuei atuando como instrutor. Depois de muitos anos, na faculdade onde tive a oportunidade de apresentar trabalhos, tive muitos trabalhos apresentados em outras turmas, alguns até foram questões de prova, vários professores me orientaram a seguir a carreira docente, pois enxergavam potencial em mim, então comecei a direcionar meus esforços profissionais para a área. Após trabalhar cinco anos na empresa IBM, a maior empresa de tecnologia do mundo, eu arrisquei tudo para ser professor de cursos técnicos. Apesar de o percurso ter sido tortuoso com altos e baixos, foi a melhor escolha que fiz na vida, pois consigo desenvolver o meu trabalho da maneira como eu gostaria que tivesse sido comigo e vejo os frutos deste trabalho sendo colhidos. É uma satisfação muito grande quando um aluno me diz que comigo, ele aprende e se torna uma pessoa e um profissional melhor.




AS PRÁTICAS PROFISSIONAIS: ELEMENTOS ORIUNDOS DA TRAJETÓRIA FORMATIVA

As trajetórias formativas dos sujeitos analisados permitem inferir algumas considerações acerca da influencia que essas experiências tiveram na concepção de ser professor e nas práticas pedagógicas priorizadas tanto numa dinâmica real de atuação, quanto como representações possíveis de ações mais coerentes em face desses universos vividos.

Quanto às posturas presentes nas práticas, os professores relatam a experiência de conviver com professores: “(...) me deixou um pouco chocada o comportamento de alguns professores, como a turma era bem distinta e precisavam controlar aqueles alunos indisciplinados, alguns já usavam um linguajar mais próximo daquela realidade, mais malandro, alguns falavam até palavrões, e isso, eu não estava acostumada, pois em casa nunca ninguém falava... Então ouvir na escola era um pouco assustador” (A.M.B.H.). Enquanto outro ressalta que “(...) A relação com a família foi substituída pela relação com os professores e colegas de seminário, pois eu era interno e só voltava para casa nas férias escolares de julho e dezembro. Era um ambiente de amizades, seriedade e disciplina, porém agradável e motivador” (A.S.R.). De outra perspectiva, o último professor afirma que “(...) na sexta série a professora não tinha como recuperar os alunos que ficavam para traz, deu andamento na matéria e quem aprendeu, aprendeu, alguns faziam aula particular, o famoso “kumon”, mas outros que não tinham condições (como eu) ficaram para traz” (G.F.).

Nesses relatos, os professores expressam comportamentos diversos que se referem tanto à questão moral quanto profissional, Para (A.M.B.H.) ouvir palavrões de um professor, ainda que justifique essa ocorrência parece diferir de sua experiência socializadora, ou seja, suas disposições entram em conflito com essa postura profissional; No outro caso, embora se tenha a impressão de um ambiente disciplinador, as disposições de (A.S.R.) parecem coincidir com àquelas priorizadas pelos professores e, (G.F.) aponta o descaso da professora que não considerava os tempos de aprendizagem como uma postura que hoje ele refuta em suas práticas pedagógicas, certamente por ter construído disposições que entendam tal comportamento como inadequado, sobretudo porque “viveu na pele” as consequências de tal prática pedagógica.

Torna-se perceptível que nos casos de (A.M.B.H.) e (G.F.) há uma conflito cultural e/ou uma crítica ligadas a posturas morais e profissionais que diferem daquilo que os sujeitos gostariam de encontrar na escola e na figura do professor, por outro lado, (A.S.R.) relata uma relação harmoniosa e motivadora nas relações com os professores, embora reconheça práticas disciplinadoras. Ocorre que suas disposições se vinculam de alguma maneira com esse universo socializador.

O trabalho pedagógico dos professores também é ressaltado nas memórias dos sujeitos. (A.M.B.H.) em dois recortes temporais, afirma: “(...) A professora nessa fase escolar, era uma mãezona, era daquelas profissionais ainda tradicionais, bravas, mas ao mesmo tempo estava pronta para ajudar os alunos em qualquer situação”...

“Os professores eram do mercado e sempre estavam bem atualizados e passavam para nós a realidade da profissão. Na verdade, só continuamos porque gostávamos e era aquilo que desejávamos, pois dependendo de alguns professores tão realistas que expunham uma realidade tão cruel, muitos poderiam até desistir”.

Sua experiência socializadora indica um trabalho pedagógico coerente com as necessidades formativas de seus alunos, quando criança a professora era severa, mas carinhosa. No ensino superior, professores preocupados com uma prática que garantisse inserção num mundo real, o que demonstra também consideração pelo trabalho realizado.
As memórias de (A.S.R.) recuperam excertos de um trabalho pedagógico onde “(...) não havia jogos ou brincadeiras. Claro que eu preferia jogar bola a ir à escola. Mas apesar dos pesares, não tive dificuldade de aprendizagem. Meu problema era o comportamento. A relação no ambiente escolar era tensa”.

“(...) a disciplina era exigida a qualquer custo”. “(...) A matéria era dada, as lições de casa tinham que ser feitas e ter um bom aproveitamento era tido como obrigação. As atividades esportivas eram bastante estimuladas, e o ambiente era de competição, tanto esportiva como de rendimento escolar”.

Mesmo diante de um ambiente nitidamente tradicional, é evidente que a prática pedagógica exercida pelos professores na experiência socializadora do professor foi capaz de promover uma sensibilização, de modo que após algum tempo, passou a responder de maneira satisfatória ao método ali aplicado.

Nos relatos de (G.F.) fica claro a inadequação do trabalho pedagógico em vários recortes temporais, além das consequências desses encaminhamentos relatados em seu depoimento: “(...) me lembro sempre de pessoas gritando comigo, me maltratando, lembro-me apenas que deveríamos ficar na roda e se alguém saísse tomava uma bronca da professora”.

“(...) lembro-me do professor de matemática que ia trabalhar bêbado, na época não tinha esta noção, mas hoje percebo o que acontecia, em relação ao aprendizado foi uma situação que me gera problema até hoje,  a professora não tinha como recuperar os alunos que ficavam para traz”.

“(...) a sensação que tinha era a de que os professores queria estar em outro lugar, de preferência o mais longe dali, no final deste ano fui reprovado, após fazer novamente a oitava série, fui mandando para um colégio do estado; como meus pais não se importavam com a escola, bastava eu estar em uma, fui para um colégio que parecia uma creche para adolescentes, os professores berravam, os alunos eram enlouquecidos”.

Um trabalho pedagógico desordenado e sem coerência com uma proposta educativa permeia as falas nos depoimentos de (G.F.) ao relatar que hoje percebe os problemas envolvidos num trabalho pedagógico conturbado e pelo que parece, longe de qualquer possibilidade de sucesso.

Para os sujeitos analisados é possível dizer ainda que para (A.M.B.H.) a presença da família foi um diferencial em sua memória formativa, enquanto para (A.S.R.) e (G.F.) essa referência não é tão evidente.

A partir da análise sobre posturas e trabalho pedagógico é possível dizer que, as práticas discutidas a partir dessas duas perspectivas revelam alguns indicadores que apontam impressões que os sujeitos trazem para sua prática, enquanto outras serviram para apontar justamente àquilo que os professores não querem para sua prática pedagógica. 



CONSIDERAÇÕES FINAIS


O trabalho teve o objetivo de construir retratos sociológicos para verificar o quanto as experiências anteriores influenciaram na formação e desempenho dos profissionais e, assim, compreender como atuam as disposições (LAHIRE, 2004) a partir das trajetórias formativas.

Os resultados permitem verificar que a atuação profissional de cada um dos sujeitos foi influenciada pelas experiências vividas na escola e pelas práticas de seus professores, e se traduzem no modo de trabalhar, de pensar, de escolher e decidir que formam a identidade profissional e docente.

As questões acerca do perfil, desafios e trajetórias da formação do professor do ensino superior, ajuda a concluir acerca da necessidade de construção de novos conhecimentos que se traduzam em posicionamentos que possam subsidiar as decisões políticas, sociais e culturais do aluno, e quando focamos ainda na formação de professores atuantes no ensino superior, essa afirmativa fica mais evidente. 

Trata-se de considerar, a partir da construção de disposições (LAHIRE, 2004), a preocupação com uma formação que permita uma inserção social coerente com os contextos vividos pelos diferentes públicos que atravessam as instituições formativas.

Para finalizar, é possível afirmar que o envolvimento com esse trabalho propiciou discussões que levaram a uma reflexão sobre nossa atuação como professores. Recuperar excertos da memória de como tudo começou, rememorar experiências e reconstruir trajetórias escolares influenciaram o desenvolvimento de nossas práticas pedagógicas, ao mensurar aspectos inconscientes de nossa identidade profissional.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Peter L., LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade – Tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

CUNHA, Maria Isabel da. Docênica na universidade, cultura e avaliação institucional:saberes silenciados em questão, publicado na Revista Brasileira de Educação v. 11 nº 32 maio/agosto 2006:


LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos – Disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.

LAHIRE, Bernard. Patrimônios Individuais de Disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia: Problemas e Práticas, n. 49, pp. 11-42, 2005.

OLIVEIRA, Lúcia Matias da Silva. As formas identitárias nos contextos de trabalho: Uma análise da profissionalidade docente.Tese de Doutoramento. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: PUCSP, 2014.

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